#002. O Tribunal do Júri é o tributo que a justiça paga à democracia
A anulação do julgamento do caso da Boate Kiss e as peculiaridades da justiça em tempos de espetáculo

A notícia da semana, na Ilha do Direito, foi a anulação, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do julgamento ocorrido no começo de dezembro de 2021, pelo Tribunal do Júri em Porto Alegre, dos acusados pelas 242 mortes decorrentes de incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, RS, em 27 de janeiro de 2013.
Você, que é curioso, certamente se perguntou por que um crime ocorrido numa cidade foi julgado em outra? A resposta é: houve desaforamento, previsto nos art. 427 e 428 do Código de Processo Penal, para quando “o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado”. Por requerimento do Ministério Público, do assistente de acusação ou do acusado ou mediante representação próprio juiz da causa, o Tribunal “poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas”. O desaforamento também pode acontecer quando a vara originária estiver com excesso de serviço e não puder julgar o caso dentro de seis meses do trânsito em julgado da decisão de pronúncia. No caso da Boate Kiss, o desaforamento decorreu de pedido de três dos acusados, que preferiam ser julgados longe de Santa Maria — onde, presumiam, já estavam condenados pela opinião pública. Como se em Porto Alegre todo mundo estivesse disposto a passar a mão na cabeça deles…
Curiosa também foi a decisão emitida pelo ministro Luiz Fux, contrariando decisão em habeas corpus obtida pela defesa no TJ-RS. O que fez Fux? Ele matou a bola no peito e mandou prender geral os quatro réus condenados.
Por quê a decisão do ministro Luiz Fux foi curiosa? Ora, por diversos motivos. O principal deles: é comum que os grandes escritórios de advocacia, durante o julgamento de casos envolvendo seus clientes, escalem três ou quatro advogados para montar plantão nos tribunais de justiça e nos tribunais superiores. Tratando bem e amavelmente desde as faxineiras do tribunal até os bisavós e bisnetos dos desembargadores e dos ministros, os advogados costumam conseguir muita coisa — como, por exemplo, ordem liminar de salvo-conduto em habeas corpus impedindo a prisão de réus condenados em julgamento pelo Tribunal do Júri pela morte de 242 pessoas. Só que desta vez foi o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul quem venceu e, ultrapassando, faceiro, várias etapas, alcançou a mesa do ministro Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal.
Ponto para os promotores gaúchos. Um dia da caça, outro do caçador.
Mas o ciclo da vida se renova. E voltamos ao dia da caça. Nos corredores das promotorias de justiça gaúchas confabula-se: será que os desembargadores do TJ-RS ficaram sentidos pela decisão do ministro Fux? Será que se sentiram desprestigiados? E, sentindo-se assim, teriam olhado com boa vontade os recursos de apelação apresentados pelas defesas? Eu só escuto. Não saberia dizer se os desembargadores, homens talhados para a aplicação da justiça, experimentados nas lides forenses, agiriam por desforra. Mas o fato é que anularam o Júri e mandaram fazer outro.
O fundamento para a anulação não foi nem um nem dois. Foram cinco: (1) violação da paridade de armas em razão do número elevado de jurados — a defesa não teve as mesmas condições que a acusação para avaliá-los previamente; (2) conversa reservada entre o juiz-presidente e os jurados; (3) violação ao princípio da correlação entre a decisão de pronúncia e a sustentação da acusação; e (4) a redação deficiente de quesitos; (5) juntada, pela acusação, de uma maquete virtual, cuja compreensão e manejo não estavam ao alcance técnico das defesas.
Em condições normais de temperatura e pressão, essas arguições seriam rejeitadas pela namorada do estagiário do assessor do desembargador-relator. Mas não estamos vivendo em condições normais de temperatura e pressão. Vivemos em tempos de advocacia criativa, justiça midiática e etc e tal. Quando falo em justiça midiática estou adentrando, sutilmente, também, o âmago deste julgamento rumoroso, pois tanto a condenação, quanto a absolvição dos réus, pelo Conselho de Sentença, não podem ser dissociadas da comoção social que a existência de 242 corpos carbonizados, asfixiados, pisoteados, causa em todos nós. O que quer dizer: quer você condene, quer absolva os quatro acusados, é provável que seu julgamento não espelhe exatamente o melhor senso de justiça, pois seu juízo estará contaminado (ou terá sido guiado) por seu sentimento de compaixão ou de auto-preservação diante da tragédia. Este tema merece ser melhor trabalhado em outra oportunidade.
Se você estiver disposto a se submeter a um experimento retórico, e tentar se comover com a indignação acadêmica usual em casos da espécie, pode ler o texto que os doutores Aury Lopes Jr. e Rodrigo Faucz Pereira e Silva escreveram sobre o tema, comemorando aquilo que entenderam como a prevalência da justiça e da ordem nos trabalhos do Poder Judiciário brasileiro. EM outro texto é u precisarei escrever algumas linhas sobre a advocacia criativa — da qual o dr. Aury Jr. é um dos nomes mais festejados no nosso atual Brasil varonil. Não me deixem esquecer. Aliás, eu não conseguiria mesmo esquecer… Todas as semanas essa turma concebe uma garantia processual nova, que não está na lei (mas deveria estar), que não causa prejuízo algum ao acusado (mas que viola princípios importantes, sim senhor), em que ninguém havia pensado antes — porque, afinal, a advocacia criativa veio para descortinar novos horizontes e elevar o processo penal brasileiro a um outro nível.

Aqui está uma diferença importante entre conceber e conceder novas garantias processuais. Dependendo do lado em que você está, sua missão é conceber; mas se você é juiz, desembargador ou ministro, não convém atuar na concepção de novas nulidades processuais; melhor é que, baseando-se em doutrinadores criativos — criativos e renomados, renomados porque criativos —, você apenas as conceda, quando for conveniente e divertido, ou uma coisa ou outra ou as duas.
De todo modo, o Ministério Público do Rio Grande do Sul não aceitou a sugestão dos advogados tuiteiros, que provocaram os promotores com o #aceitamprs nas redes sociais.
Os bravos integrantes do Parquet gaúcho recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, que, se estiver em boa lua, poderá manter o julgamento e devolver os quatro condenados para a cadeia, pelo menos até o julgamento definitivo do recurso de apelação pelo mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Enquanto isso não acontece — se é que vai acontecer —, os dias continuarão bons para os advogados e (um pouco menos, porque permeados de ansiedade) para os acusados que, graças aos desembargadores do TJ-RS, estão tomando café-da-manhã em casa com a família.

Tudo isso só está acontecendo, na minha opinião, porque estamos falando de Tribunal do Júri, em que o julgamento é feito por sete juízes leigos — os jurados. A participação do povo em questões técnicas, complexas, é sempre um negócio complicado. A democratização dos julgamentos do Poder Judiciário — razão de ser do Tribunal do Júri — tem seus custos. Um deles é esse: as chances de nulidade se multiplicam praticamente ao infinito. Se o jurado pescou de sono, o Júri pode ser anulado. Se o juiz-presidente vacila e permite a formulação de perguntas diretas pelos jurados — e algum deles, sem querer, adianta um pré-julgamento —, o Júri pode ser anulado. Com essa, agora, do TJ-RS, até mesmo se o juiz-presidente resolve trocar uma palavrinha a sós com os jurados, o Júri pode ser anulado. Para os advogados, só não pode ser anulado o Júri em que seus clientes são integralmente absolvidos de todas as acusações. Aí, sim, não há nulidade alguma a ser decretada, ora. Claro. Porque — pensem comigo: se só há nulidade se houver prejuízo, logo não há nulidade se está todo mundo feliz.
Fragmentos de um discurso acusatório
Como andam os fragmentos de um discurso acusatório? Vão bem, obrigado. E nesta semana quero compartilhar com vocês mais dois verbetes, inspirados na baixa criminalidade. Já-já vocês entenderão porque estou utilizando esta classificação — pois outros escalões serão explorados aqui.
Segue minha contribuição semanal para o aprofundamento das intuições linguísticas subliminares dentro do nosso ramo — tão maltratado com jargões e clichês:
Cachaça. 1. Bebida produzida a partir da cana-de-açúcar, comumente utilizada como arma, pelo infrator, em suas contendas contra o super-ego ("Tomei cachaça e perdi a cabeça"). 2. Artifício que tende a incrementar, no potencial criminoso, o apetite irascível ("Eu bebo cachaça é pra tomar coragem"). 3. A quem, nos interrogatórios, costuma-se atribuir a responsabilidade pela prática de infrações penais ("Foi a cachaça, doutor"). 4. Gênero no qual se incluem bebidas alcoólicas de variada espécie e preço, com que se busca amaciar a conversa entre os comparsas, enquanto discutem, verbi gratia, as vantagens de uma colaboração premiada proposta pelo órgão acusatório. 5. Estado provisório no qual ainda é possível evitar a prática de crimes ("Estou só a cachaça").
Antecedentes criminais. 1. Fator que influencia a dosimetria da pena, cf. art. 59 do Código Penal ("Aumenta a pena desse rapaz, porque ele é bicho ruim: ele tem antecedentes"). 2. Capivara. 3. Folha corrida. 4. Facilitador da decretação de prisão preventiva, cf. art. 312 do Código de Processo Penal ("Deixa esse cabra preso: olha só os antecedentes dele"). 5. A vida inteira que poderia ter sido e que não foi. 6. Real impedimento à obtenção de um emprego decente. 7. Ponto positivo para ingresso em organizações criminosas sofisticadas. 8. Primeiro tópico de uma abordagem policial padrão ("Tem antecedentes, moleque?", com suas variantes: "Tem passagem, vagabundo?" e "É egresso, senhor?").
Receba meu forte abraço! E, se precisar de um defensor num caso criminal complexo, hoje, não se esqueça: talvez seja bom dar preferência a um advogado criativo…
Muito bom.
Obrigado prof. Bruno. Que Deus Te abençoe sempre.
Abraço.
Parabéns prof. Bruno,
Precisávamos de conteúdos como esses. Show!
Obrigado por compartilhar.
Forte abraço