Alguns nomes selam o destino. Na Prefeitura de Governador Valadares havia um motorista chamado Nick Lauda. Numa das procuradorias da República em que trabalhei estava lá, no setor de autorização de exames e procedimentos do plano de saúde dos servidores, uma moça chamada Liberalina (um perigo para o orçamento, essa moça).

Mas tem mais. O professor de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto, o português Desidério Murcho, também confirma a regra (não pelo Murcho, mas pelo Desidério): desiderium é o desejo por algo de que se está privado — e é por aí que Platão define a Filosofia no seu Banquete, 200a (“o que deseja deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja”). Além disso, siderĕus, em Latim, é “pertencente ou relativo a um astro ou aos astros”, é “celeste, divino, brilhante, formoso” — e isso também traça o destino do professor Desidério e o coloca na casta originária de Tales de Mileto e de Platão.

A esses ilustres predestinados pelo nome a nação brasileira acrescentou mais um: Sérgio Fernando Moro. O ex-juiz federal, ex-ministro da justiça, ex-futuro-ministro do STF, enfim, ex-queridinho de (quase) todos os brasileiros, é um homem sem casa. A acusação lançada por seus adversários provavelmente não vai dar em nada, mas busca tirá-lo da disputa pelo Senado na vaga do Paraná. Ao longo desse processo, ele já disse moro aqui e já disse moro acolá. Mas o pessoal quer saber: mora mesmo? Onde e quando?
Pois é. Onde mora Sérgio Moro?
É evidente que a ambiguidade domiciliar de Sérgio Moro só incomoda porque ele tem potencial eleitoral. Primeiro, a transferência de seu domicílio eleitoral para São Paulo foi contestada no TRE-SP. Moro perdeu. Como não recorreu, a decisão transitou em julgado. Por isso, seu domicílio eleitoral, em tese, voltou a ser — como não tinha oficialmente deixado de ser — a cidade de Curitiba, PR. Na ação de impugnação de registro de candidatura (AIRC) proposta nesta semana, a candidata ao Senado pelo Paraná, Eneida Desirée Salgado, diz que Moro estava fazendo sua vida, recentemente, no Distrito Federal, e que declarou ter domicílio eleitoral em São Paulo, SP, ao pedir a transferência de seu título de eleitor para lá. Você pode ler a petição dela aqui.

Isso importa porque o art. 14, § 3º, da Constituição da República estabelece como condições de elegibilidade, além da idade mínima, variável para cada cargo: (i) a nacionalidade brasileira; (ii) o pleno exercício dos direitos políticos; (iii) o alistamento eleitoral; e (iv) o domicílio eleitoral na circunscrição; e (v) a filiação partidária.
Como Sérgio Moro passou um tempo em Brasília e decidiu declarar domicílio num hotel da Alameda Santos, na capital paulista, a adversária dele ao Senado encrencou e disse que ele não preenche o requisito do art. 9º da Lei federal n. 9.504/97, segundo o qual “[p]ara concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses e estar com a filiação deferida pelo partido no mesmo prazo”. Esse é o pulo da gata. Como o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo indeferiu a transferência do domicílio eleitoral do ex-juiz no dia 7 de junho deste ano, e a decisão transitou em julgado no dia seguinte, logo, ele não teria domicílio eleitoral no Paraná há seis meses antes do registro da candidatura, pois acabara de declarar, ao TRE-SP, em 30.03.2022, que morava em São Paulo.
Aliás, o dia 30.03.2022 é um grande dia para a, por assim dizer, vida política de Moro, pois foi o dia em que ele também se filiou ao União Brasil, de Luciano Bivar — mas também de ACM Neto, que não gostou nada de vê-lo zanzando no seu quintal como pré-candidato a presidente da República. Enfim, o dia 30 de março é um dia que não deveria ter existido na vida do ex-juiz. Quem mandou sair de casa? Deu tudo errado.
Mas é a declaração que ele fez no requerimento de transferência de domicílio é que é o problema. Se ele declarou domicílio em São Paulo e, depois, registrou candidatura no Paraná, Desirée Salgado quer porque quer que ele resolva essa questão consigo mesmo antes de se lançar candidato — talvez numa próxima oportunidade, já que a lei eleitoral diz que ele deveria ter o domicílio eleitoral líquido e certo seis meses antes do registro da candidatura.
Sejamos objetivos. É improvável que o TRE-PR indefira o registro da candidatura de Sérgio Moro ao Senado pelo Estado, porque todos sabem que ele é paranaense desde o nascimento, que sempre morou por ali, que ali fez carreira, enfim, não tem muito para onde correr. Na minha opinião, a declaração de domicílio em São Paulo não chega a ser um problema, na minha opinião, por duas razões: (i) o nosso Código Civil, ao estabelecer as normas a respeito do domicílio, permite a manutenção de mais de um domicílio. No seu art. 71, por exemplo, diz que “se a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas”; e, no parágrafo único do art. 72, que “se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem”; e (ii) o requerimento de transferência de domicílio foi indeferido pelo TRE-SP dentro da impugnação protocolizada pelo Partido dos Trabalhadores. Na prática, o ex-juiz disse à Justiça Eleitoral: “Ei, eu agora moro em São Paulo”; e o Tribunal Eleitoral disse: “Mora nada. Você mora no Paraná, que eu sei”. Logo, para todos os fins, a transferência não foi aceita; ela não existe e nunca existiu. E o que não existe não pode produzir qualquer efeito.
Então, até segunda ordem, ele é candidato ao Senado pelo Paraná pelo mesmo União Brasil. Fica, desde já, a sugestão de mote para a campanha do candidato — um mote ambíguo, como ambígua é sua trajetória entre as raposas da política brasileira:
Moro, sim!
Como anda a Justiça Criminal brasileira?
Olha, eu nem comento. Andando pelos sites jurídicos nesta semana, eu me deparei com uma notícia que vale um comentário ou dois: o Tribunal de Justiça de Minas Gerais disse ser ilegal a decretação da prisão preventiva sem contraditório prévio. Essa é a manchete da notícia que você pode ler aqui.
O caso era de um homem de Frutal, MG, que “atropelou um cabrito, danificou uma cerca e ameaçou incendiar a casa de uma das vítimas, uma das quais teria descumprido um contrato de imóvel após ter sido ameaçada de morte pelo homem. Em seguida, o idoso foi até a casa do advogado da vítima e também o ameaçou de morte. Ele mostrou um galão de álcool que supostamente usaria para incendiar a residência do advogado e ainda o golpeou no rosto. Depois disso, a polícia foi acionada e encontrou três armas de fogo carregadas, um simulacro de pistola e setenta unidades de munição na casa do idoso, além de um galão de cinco litros de combustível”.
Segundo o Ministério Público, ele descumpriu as medidas cautelares diversas da prisão que lhe foram fixadas pelo juiz, o que exigiria a aplicação do § 4º do art. 282 do Código de Processo Penal (CPP): “No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código”.
Justo, não?
Portanto, o promotor de justiça requereu ao juiz a prisão preventiva, que foi deferida. Em habeas corpus, porém, o TJ-MG disse que ele deveria ter sido ouvido antes da decisão.
Faz sentido?
Bom, a manchete da notícia não fazia sentido, pois há prisões preventivas e prisões preventivas. Mas, olhando o caso em seus detalhes, a decisão do desembargador não chega a ser absurda. Como o motivo da prisão preventiva foi o descumprimento das medidas cautelares — descumprimento alegado pelo Ministério Público —, é sensato entender que era o caso de determinar a notificação do cabra, para manifestação. É o que diz o art. 282, § 3º, do CPP: “Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo, e os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”.

O ponto é que o promotor de justiça também alegou que “foi constatado o envolvimento do acusado em diversas outras infrações, evidenciando o risco que sua liberdade representaria à ordem pública”. Se os desembargadores estivessem num dia bom (o famoso dia da maldade), levariam tranquilamente o camarada para a cadeia pública. Mas decidiram lhe dar a contraordem de prisão. Para isso, os detalhes do caso contaram bastante. O juiz convocado votou de acordo com o relator, mas disse que não existe essa estória de intimar a defesa antes de decretar a prisão preventiva, não, tá maluco?, pois o § 4º do art. 282 do CPP permite ao juiz decretá-la até mesmo de ofício em caso de descumprimento de medidas cautelares. Porém, o mesmo juiz convocado entendeu que não havia prova suficiente de que o camarada descumprira as medidas cautelares. Além de tudo, o acusado tem oitenta anos e é primário.
Isso dá ou não dá um conto? Oitenta anos. Primário. Fazendo arruaça com galão de gasolina, arma de fogo e tapa na cara de advogado.
Tem coisas que só acontecem no interior de Minas.
Fragmentos de um discurso acusatório
O fragmento de hoje fecha uma das sessenta partes dos rascunhos subsidiários de um livro que eu provavelmente nunca escreverei. Segue:
Malandragem. 1. Estado daquele que, com habitualidade e permanência, pratica pequenos crimes contra o patrimônio. 2. Um coletivo de malandros ("A malandragem se reúne diariamente na casa de Fulano"). 3. Antônimo de manoelzice ("Malandro é malandro, mané é mané"). 4. Qualidade do indivíduo esperto, que vive no limite da moralidade ("Fulano é malandro, com jeitinho sempre consegue o que quer"). 5. No Rio de Janeiro, ato ou efeito do indivíduo que inspira confiança ("Ele é malandrão, gente fina e boa pinta; conhece meio mundo: pode confiar de olho fechado"). 6. Traição, deslealdade ("Você está de malandragem comigo"). 7. Equipe responsável pela fiel implementação de uma diligência oriunda da hierarquia superior de uma organização criminosa ("A malandragem já está na rua executando"). 8. Entidade coletiva anônima que estabelece a norma em dado território ("A malandragem não quer ninguém nas ruas depois das 22h").