#007. Uma pitada de sal nas atas de audiência
A maior vítima do juridiquês não é o leigo que porventura se vê às voltas com a Justiça. A maior vítima do juridiquês são as atas de audiência e as certidões dos oficiais de justiça.
Circula por aí uma teoria segundo a qual as atas de audiência fazem parte do rol de documentos mais antigos da humanidade. É intuitivo que sim. A contabilidade feita nos muros das cavernas todos conhecemos. Mas entre os desenhos rupestres e os primeiros poemas muito provavelmente alguém teve a ideia de registrar, por escrito, o que se passava nas sessões colegiadas em que era decidido o futuro dos cidadãos que violavam a lei da tribo.
A ata de audiência é o começo da civilização: é o documento ao qual as pessoas podem recorrer para dizer: “Ó, não foi isso o que foi conversado”, “Não foi essa a pena estabelecida pelo juiz. Olha a ata”.
Sim, vejamos a ata.
Da pré-história até hoje, pouca coisa mudou na formulação desse documento. Sua capacidade de dar segurança aos atos processuais parece estar em relação direta com sua falta de tempero.
Aqui no Diário da Justiça, porém, vamos seguir a sugestão de São Paulo (Carta aos Colossenses 4:6) e colocar uma pitada de sal nesse documento tão justamente difamado na História do Direito Ocidental.
Um leitor chamado Alarico Celestino nos enviou a seguinte ata, que ele próprio fez, como assessor de juiz, numa audiência ocorrida em 09.06.2022 na Vara Única da Comarca de Rio Comprido. Dela publicaremos, por enquanto, só a primeira parte. Atentemo-nos à arte com que ele a redigiu, ad referendum de sua Sua Excelência o juiz de direito presidente da sessão — que a tudo anuiu com gosto, segundo relato do oficial de secretaria:
No dia 09 de junho de 2022, na sala de audiências da Vara Única da Comarca de Rio Comprido, reuniram-se todos sob a presidência do juiz de direito, o já cansado dr. José Braga dos Santos. Quem são todos? São o promotor de justiça sangue-no-olho dr. Ronaldo Felício, o dr. Geraldo Bezerra, defensor do acusado Fabrício Mendonça, achando que conseguirá libertar seu cliente hoje mesmo, o próprio acusado Fabrício Mendonça, com cara de cordeirinho para convencer o juiz a soltá-lo (como a dizer “eu matei as duas vítimas, dr. Excelentíssimo, mas foi em legítima defesa, eu não ofereço perigo para ninguém, solta eu, doutor”), o dr. Oronilton Ferreira, defensor do acusado Benício Araújo, esse dr. já um pouco desanimado, pois conhece o juiz, mas mesmo assim está fazendo cara e jeito de que soltará o cliente hoje mesmo, através de um requerimento oral emocionado que eu serei obrigado, com cara de alface, a digitar na ata, o próprio acusado Benício Araújo, conformado com a prisão preventiva e já calculando quanto terá de pagar ao advogado pelo habeas corpus, os estagiários de direito Bruno Esteves e Rebeca Cortez, ambos buscando passar a impressão de que já assistiram a mil e quinhentas audiências e que já estão habituados a estar a um metro e meio de dois assassinos sanguinários, tudo normal, vida que segue, e eu, que digito esta ata em benefício da verdade dos fatos. Aberta a sessão, o oficial de justiça, com aquela voz de sonso, apregoou os presentes, que logo pararam a conversa que mantinham lá fora no ponto em que jamais voltarão e se dirigiram para a sala de audiências. Com certeza o pessoal, ao entrar, e sentiu o cheiro de cachaça vindo do oficial, coitado, está passando por problemas na família (há mais de quinze anos que está), gasta metade do salário no boteco, e forçou os proprietários dos três bares próximos de sua casa a improvisar um cartaz, pretensamente dirigido a geral, alertando “não se vende bebida alcoólica antes das 7h da manhã”. Quer tenham sentido, quer não, o cheiro da cachaça, todos entraram e deram uma sondada no ânimo do dr. José Braga, como um termômetro a sentir o que poderiam esperar da sessão. O dr. José Braga é juiz de primeira viagem, mas já está acostumado a fingir naturalidade. Na verdade, ele não está exatamente preocupado com esse caso. É natural que ele queira manter suas decisões anteriores. Portanto, soltar os dois acusados, só por obra do Tribunal de Justiça. Mas é tamanha sua indiferença em relação ao caso que sua experiência já o ensinou: para o bom andamento dos trabalhos, é bom que saiba fingir um mínimo interesse pelo caso (“vamos alcançar a verdade real, senhores, e a justiça será feita”, diz). A manutenção de um estado inercial de indiferença costuma gerar problemas porque causa distração e e atrasa sua necessária intervenção quando porventura começa o bate-boca entre o advogado e o promotor (na última altercação, ocorrida na semana passada, ele estava tão indiferente à sorte do caso que só se deu conta da briga em plena sala de audiências quando o promotor já se levantava para, dando volta na mesinha vagabunda do MP, ir em direção ao advogado para agredi-lo). Depois eu falei com o dr: “Mas, doutor, o senhor não percebeu que eles estavam batendo boca já há um tempinho?”. Não, ele não percebeu. Estava jogando a caneta de uma mão para a outra, esperando que eu terminasse de digitar a resposta da testemunha na ata. Aliás, já não é tempo de o dr. me dispensar de digitar o depoimento da testemunhas? A audiência é toda gravada em vídeo, por ordem do Tribunal. “O cauteloso nunca perde”, diz. “Precisamos nos acautelar. Já pensou se perdemos esse arquivo aí? Deus me livre. Continua registrando em ata”. Valei-me, Santo Expedito! Então tá. Sua Excelência o dr. José Braga anuncia o caso: “O Ministério Público, na pessoa do dr. Ronaldo Felício acusa os réus Fabrício Mendonça e Benício Araújo de, no dia 02.05.2017, terem cometido homicídio contra as vítimas Fernando dos Reis e Murilo Gonçalves, por vingança, na Rua das Pedras, altura do n. 67. O crime foi cometido por volta de 11h50min da manhã, e temos aqui três qualificadoras que a denúncia adequadamente descreve. Vamos começar?” Todos balançaram a cabeça positivamente. Até os réus, sabendo que vão tomar ferro e que continuarão presos, concordaram, momentaneamente contentes porque tiveram a oportunidade de concordar com o juiz logo no começo, o que poderia indicar, um pouco puerilmente, que entre todos haveria mais concordâncias que discordâncias. A esperança, quando já não há nenhuma, volta sempre em forma de fantasia. Entrou a primeira testemunha de acusação, um tal de Fábio Alencar, testemunha ocular do crime. Está com medo? Com medo estou eu… Ele está tremendo de medo dos dois acusados. O promotor pede ao juiz que se lhe pergunte se gostaria de depor sem a presença dos acusados. O advogado do Murilo protestou (no fundo ele não está nem aí para esse detalhe, mas está sendo pago sobretudo para contrariar o Ministério Público — se fica calado numa dessas o promotor ganha espaço e ele terá, doravante, cada vez mais dificuldade de justificar seus gordos honorários). “Protesto, Excelência” (…)
Fim da ata. E o que vem depois?
Vou poupar vocês das notícias da semana, até porque o tempo para meditar sobre elas me faltou completamente. Houve poucos fatos dignos de nota, mas de todo modo sem nota ficarão. Vocês suportarão ficar uma semana sem os meus comentários ao noticiário jurídico? Tenho certeza que sim.

Garanto que eu e você perderemos pouco com essa lacuna. Até porque me cocei para comentar o caso do advogado que pediu a condenação do Raul Seixas por morte de príncipe em acidente aéreo. O autor da ação diz ter informações privilegiadas porque é conselheiro, secretário e membro da diretoria da Ordem dos Músicos do Paraná. Eu fui forte. Resisti. Estou tentando fazer jejum de sarcasmo. Dois meses sem fazer graça com a vergonha alheia e terei dado um passo importante rumo à maturidade.
Fragmentos de um discurso acusatório
Como há algumas semanas não aparecem por aqui os verbetes dos meus Fragmentos de um discurso acusatório, hoje venho com outros dois.
Oportunidade. 1. Ocupação que costuma pressupor capacidade de falsificar documentos e enganar pessoas. 2. Uma chance, em mil, de virar o jogo ("Esquece essa frescura de 'certo e errado'; essa é a oportunidade que a gente tem de ganhar uma grana!). 3. Ocasião em que o cavalo passa selado. 4. Ideia luminosa que frequentemente surge na mente de um jovem adulto sem dinheiro depois que ele conclui que todos os modos de obter um trabalho honesto exigiriam dele mais do que ele está disposto a entregar. 5. Qualquer solução ilusória para ganhar dinheiro. 6. Porta larga que leva à perdição. 7. Conjunto de fatores, em princípio, atraentes que revela sua verdadeira natureza depois que a polícia chuta a porta do local e leva todo mundo preso. 8. Job. 9. Furada ("Fique rico sem sair de casa"). 10. Correria. 11. Modo de redistribuição de renda ("Eu não sou ladrão, não, doutor; eu pego a oportunidade que aparece e faço a minha justiça"). 12. Tudo o que pode ser encontrado na feira do rolo - sobretudo o que não está exposto nas bancas.
Livre-arbítrio. 1. Capacidade que o indivíduo tem de eleger os meios e os fins de sua conduta. 2. Poder de operar cagadas. 3. Para os néscios, probabilidade de fazer bobagem ("Não deixa ele decidir sozinho, não, que vai dar problema"). 4. Para os indecisos, angústia. 5. Somente o homem virtuoso é livre. 6. Pressuposto para a aplicação da pena criminal ("Se era capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento"). 7. A dor e a delícia de ser o que é. 8. A verdadeira liberdade é interior. 9. Tudo o que se quer fazer ("Faz o que tu queres pois é tudo da lei"). 10. Liberdade para fazer o que se deve (ressonâncias kantianas). 11. Isso deu naquilo ("Se três gerações disputavam quem faz mais trapalhadas, os filhos terão oportunidades limitadas de florescer"). 12. Ἐλευθερία. 13. Disciplina é liberdade. 14. Compaixão é fortaleza. 15. Ilusão da liberdade original (“O homem nasce livre, e, em toda parte, encontra-se acorrentado"). 16. A sua liberdade termina onde começa a liberdade do outro. 17. Ama et quod vis fac.
Os próximos fragmentos virão acompanhados de sugestões de música e leitura para acompanhamento. A coisa aqui vai começar a ficar invocada. Hã?
Revelando um segredo de Barthes
Na próxima semana vou esclarecer por que a morte do autor, proclamada por Roland Barthes, acabou no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Não perdam!
Bruno,
Como assim? Começa a ficar invocada? não! Já está...rs
Adorei o escritor bem humorado e super criativo, Alarico é - de fato e sem dúvida - um excelente jornalista, aqueles que nos dão saudades!!
Parabéns pela matéria.
Abraços