#009. Quando voltaremos a dormir em paz?
Os desiludidos do amor / Estão desfechando tiros no peito / Do meu quarto ouço a fuzilaria / As amadas torcem-se de gozo / Oh quanta matéria para os jornais

Em um de seus discursos mais conhecidos, Rui Barbosa avaliava junto aos senadores da República do que “a falta de justiça” era capaz: “é o grande mal de nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria absoluta desta pobre nação”.
Ecoando o Platão da República e já velhas de um século, as palavras de Rui são o retrato profético (também) da alma brasileira contemporânea. Profecia, sim, mas vinda de uma voz que clama no deserto. Como os atenienses que caçoaram de São Paulo, a maioria de nós não compra essa doutrina por inteiro, mas seleciona dela os trechos que preservam, sem riscos, nossa preguiçosa visão de mundo.
Parte da resistência em reconhecer a injustiça nas decisões proferidas, por exemplo, pelo STF em investigações criminais por ele conduzidas (no Inquérito das Fake News etc) ou pelo STJ, mais recentemente, em casos de tráfico de entorpecentes, vem da confusão que há entre ela e a mera divergência de entendimentos — tema espinhoso enfrentado pelos filósofos do Direito.
A primeira lição que o estagiário de Direito aprende com o advogado-chefe é a de que há jurisprudência para todos os gostos. Por isso é fundamental que ele aprenda, já na faculdade, uma habilidade essencial para o sucesso na profissão: saber encontrar, no repositório eletrônico dos tribunais, os acórdãos que, em determinado balanço das marés, fundamentarão as teses que defenderá em juízo.
Essa característica da atividade judiciária, resultado do alargamento dos critérios utilizados pelos magistrados e fruto direto da inflação das razões de decidir que habitam a cabeça de cada de juiz – hoje assim, amanhã já não sabemos – pode passar a impressão de que o Direito e sua concretização judicial são palavras na boca de sofistas pontificando em terra de ninguém. Sendo assim, enquanto o tiroteio grassa lá fora, só nos restaria encontrar um refúgio distante da praça pública onde os contendores disputam a posse da razão.
Essa é, contudo, nas boas democracias, uma falsa impressão.
A usual divergência de entendimentos nunca matou nossa expectativa de Justiça. O sistema recursal está aí para garantir um mínimo de uniformidade no fluxo geral das milhares de decisões judiciais tomadas diariamente nas comarcas e subseções judiciárias Brasil afora. A maior experiência dos desembargadores e ministros (em comparação com os juízes de primeiro grau) e o filtro excludente que o mesmo sistema recursal imprime nas causas que chegam aos tribunais buscam garantir que eventuais pontos fora-da-curva lançados aqui ou ali por juízes ou até mesmo pelos próprios tribunais possam ser corrigidos e uniformizados conforme o remansoso entendimento das cortes superiores.
Na realidade, a contemplação preguiçosa desse remanso a que tende, com alguma variação, o esforço pacificador dos órgãos de cúpula dos sistemas judiciários dos países ocidentais termina por imprimir no nosso espírito, pelo contrário, a confiança em que eventuais decisões injustas, resultado de uma leitura meramente equivocada da lei ou mesmo de desvio de conduta dos magistrados, serão corrigidas pelas instâncias superiores. Com isso, em boa parte do tempo, contamos com o Poder Judiciário para garantir a ordem das relações sociais e dormimos em paz.
Apesar disso, há poucos anos os brasileiros temos perdido o sono com uma boa sorte de disparos ouvidos na vizinhança. A incômoda fuzilaria não enfrenta resistência (não há, no horizonte, qualquer sinal de contenção). E o filósofo, acordado de madrugada pelo barulho, sentado na cama, calmo como o Sócrates do Fédon, chega a se perguntar se os tiros que passaram a fazer parte de suas noites perdidas pretendem restabelecer a ordem ou se, pelo contrário, violam-na. Em bom português: quem nos tem tirado o sono é a polícia ou o bandido?
A pergunta socrática não pretende ofender (o momento exige essa ressalva). É apenas o tributo que o filósofo insone, na tentativa de entender o que está acontecendo, paga a nós, de todos os lados do espectro de cores que é o Brasil, que sofremos com os impactos da desorientação. É que viver num estado de coisas incerto aciona nossas defesas mais primitivas, e então as vistas já não discernem os múltiplos tons de cinza: só há amigos e inimigos.
Essas linhas foram precipitadas pelo espantoso indeferimento, pelo Tribunal Superior Eleitoral, da candidatura do deputado federal e ex-procurador da República Deltan Dallagnol — decisão que aproxima ainda mais o bafo da repressão do cangote de todos os que, na vida privada, tendem às ideias conservadoras/liberais. Quando os juízes podem tudo, e interpretam a lei fazendo-a dizer o que ela não diz, não há mais civilização possível: a palavra perdeu seu caráter de referência firme, ao serviço de todos, e se transformou em instrumento a serviço da conveniência momentânea de uns poucos grupos.
As questões que este texto pretendeu levantar são muito complexas, e demandam muito estudo e reflexão - com incursões em Direito, Filosofia, Sociologia, História do Brasil, Psicologia, Ética, Política etc. Não garanto que conseguirei respondê-las, mas é certo que estou empenhado, pelo menos, em montar o problema.
Excelente,como sempre, professor!
Muito obrigado por voltar, Professor.